A calmaria durava já duas semanas, a ração de naufrágio escaceava e já quase não havia água doce para acompanhá-la.
Desde que o mastro do velho Rajada se quebrou, fez inúmeras tentativas de repará-lo, sem sucesso.
Nunca navegara em solitário.
Sempre o desejara, porém, e falava disso em todas as conversas, sempre mais animadamente depois do terceiro ou quarto copos. Aliás, falava animadamente após tantos copos, sobre tantos assuntos e com tanta convicção que, às vezes, acreditava mesmo que pudesse estar certo.
Mas agora, além do paralelo 10, nada lhe trazia alguma convicção.
A última história que ouvira dum navegante solitário fora do patético inglês que, em uma regata, simulou por rádio as várias pernas que teria percorrido para, não se sabe se num acesso de loucura ou desespero, finalmente, adoecer e afogar-se a bem poucas milhas do ponto de partida !
Seu mastro da fortuna, armado com a retranca e um corte da genoa, de nada lhe valeria se a calmaria não tivesse fim. Ainda assim, apegava-se a essa pequena esperança. Que viesse uma tormenta, se ataria ao convés, encharcado de água doce, sem importar qual rumo tomasse, desde que para longe ou para perto.
Observou de novo as linhas que lançara das amuras, pensando em algum pescado. Lembrou das fedorentas cigarrilhas que o acompanhavam a todo lugar. Quantos dias sem tabaco ? Quantas semanas sem cerveja ou o que mais ?
E quantos mêses sem um embate real, proa a proa, sussurrando para que o oponente não lhe percebece a tática, aos gritos para que a manobra fosse executada no tempo justo, a cambada precisa, a genoa se enchendo ao som da catraca, apenas para cambar novamente, e outra vez, marcando ou fugindo da marca.
Mantinha ainda algumas rotinas. Ao amanhecer, um bloco de ração, mastigado dolorosamente.
Hoje, distoceu lentamente os cabos guardados no paiol, ressecados.
Verificou as catracas, imaginando se seriam necessárias novamente. Puxou, uma a uma, as linhas de pesca. Usava ração como isca, mas a ração se dissolvia rapidamente, devendo ser recolocada nas iscas. Mas dali até o horizonte, nenhum peixe.
Depois de todo esse tempo, a disciplina se esvaira. O caderno de notas e o diário de navegação tinham ainda algumas anotações, mas deixara de marcar sua posição e os horários. Nas páginas mais recentes, garatujas se espel;havam pelas linhas, entre poucas anotações que já deixavam de fazer sentido.
Dok realmente tentou tomar seu tempo a imaginar histórias, mas as garatujas venciam.
Pensou apenas que, se voltasse a aportar, daria um sobrenome ao Rajada: garatuja.
domingo, novembro 27, 2005
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