quinta-feira, fevereiro 03, 2005

1. O Tesouro da Família Cheveteer

[ Upon assignment by Paulo Vidal ]

O sol entrava pelas frestas do teto retrátil da sala de descanso da sauna e tornava o local extremamente agradável. A música suave e o aroma de eucaliptos completava o clima zen do enorme salão da cobertura triplex, que tinha uma deslumbrante vista para o mar azul do Rio de Janeiro. Marcel estava deitado em uma das cadeiras espreguiçadeiras e tinha uma toalha úmida nos olhos. Vestia um enorme roupão branco que deixava vislumbrar parte do seu corpo bronzeado. No bolso do roupão, as iniciais "MYC" estavam bordadas em dourado.
Sem mexer o rosto e sem se levantar, Marcel pegou o telefone sem fio apalpando a mesa lateral. Apertou um dos números da memória.
- Kika? É você?
- Falaí ô Coquito... – respondeu a moça, palitando os dentes - Estou na copa, Cók´s.
- Olha como fala. Já disse um milhão de vezes para não me chamar assim. Onde está August? – perguntou Marcel, irritado.
- Na biblioteca, ô meu – a moça respondeu, bufando.
- Ufa. Está envolvido com aquelas “poesias” de novo? – Marcel suspirou – Eu não acredito...
- Quer que eu chame o cara? – perguntou Kika.
- Sim, peça para ele vir aqui. E peça a Tony trazer todas as pastas do dossiê 69 – o homem completou, ainda sem se mexer – Inclusive aquelas com os comentários do advogado e dos detetives.
- Falô, beleza, “senhor Gemada” – respondeu a moça, irônica.
- Kika – o homem suspirou – Nunca meia me chame assim, entendeu? Nunca mais! "Gemada" ou "Coquito" morreram. Morreram! – desabafou o homem, desligando o telefone.
Ainda com a toalha no rosto, Marcel colocou o telefone ao lado e respirou fundo. Como era difícil ensinar Francis Drake, a sua Kika, a ser fina, chique, elegante, pensou o Marcel, desanimado. Talvez fosse impossível. Uma moça que viveu no meio de tantos homens, que passou por tantos portos e que correu o mundo num barco talvez nunca conseguisse ter outra linguagem. Kika falava para se defender, era uma língua que a protegia, que estava arraigada na sua vida. A moça era fidelíssima e muito amiga de Marcel, mas irredutível quando resolvia ser turrona. Não deixara Marcel trocar seus documentos e nem seu nome, não concordou em mudar o estilo do seu guarda roupa, não topou ser ruiva e nem concordou em fazer plástica. Só topou ser chamada pelo apelido da infância ao invés do seu nome: Kika.
Marcel não entendeu nada. Qualquer mulher daria pulos de alegria de receber um guarda roupa novo, uma plástica grátis e horas e horas de cabeleireiro. Mas ela não. A marinheira capitã Kika bateu o pé e disse um enorme não. Ficou irritada e brava com o autoritarismo de Marcel, que achava que tudo deveria ser do modo que ele resolvia, e ameaçou ir embora dali e não trabalhar mais com ele. Ela não ia ceder aos caprichos do homem só porque ele era milionário. Não ia mudar completamente de vida, oras. Gostava de ser loira, de usar suas roupas de ginástica, gostava de sua pele bronzeada e do seu nome, que era o mesmo de sua avó, Francisca Cheveteer.
Francis morou parte da sua infância com a avó, uma religiosa fervorosa, no sul do Brasil. Como a senhora tinha a saúde muito fraca, um dia adoeceu e acabou morrendo. A última pessoa que a viu com vida foi sua neta Francis, filha do seu filho mais velho, um marinheiro também viúvo, Cláudio. Francis e a avó eram muito unidas, e depois da morte da mãe a avó passou a cuidar da menina.
Dona Chica, a avó de Francis, agonizou durante semanas. Na hora da morte a velha senhora segredou à menina, no pé do ouvido, algumas palavras desconexas. Falou de um tesouro, das jóias da família, de uma arca enterrada, de uma garrafa de ouro, de Varsóvia, do mar Cáspio, de três coqueiros, os bronzes polidos, o milagre, o milagre, as moedas, a garrafa de ouro, o milagre da garrafa... a pequena Francis não compreendeu nada. Apenas esperou a chegada do pai e disse a ele que a avó falou sobre um tesouro numa ilha.
Ele entendeu na hora do que se tratava: era o tesouro da família. O homem ficou apavorado, segurou a menina com força e a ameaçou: ela não poderia contar aquilo a nenhuma pessoa, senão ele acabaria com a vida dela. O Capitão Cláudio Chevetter ficou atônito e só pensava na arca com o tesouro da família, enterrado pelo seu pai, o temível e terrível Capitão Katinsqui Cheveteer, o pior e mais perigoso pirata dos doze mares.
Rezava a lenda que o Capitão Katinsqui, pai de de Cláudio e avô de Francis, na ânsia de salvar a fortuna da família de perigosos bandidos e vilões, enterrou o tesouro numa ilha secreta. Anos depois morreu numa batalha, sem contar a ninguém onde colocou a fortuna. O filho Cláudio, na época apenas um marinheiro, procurou feito um louco a arca, mas não achou e deu por perdido o tesouro. Jamais imaginaria que sua mãe soubesse de tudo e que pudesse guardar esse segredo por tantos anos. E agora era Francis que sabia de tudo.
A sua pequena Francis.
O Capitão Cláudio achou que ia ficar rico rapidamente, mas as coisas não aconteceram como ele queria. A menina ficou assustada com tudo que houve e emudeceu. Não conseguia falar ou se comunicar com o pai, tampouco repetir para ele as palavras da avó. Ele berrou e urrou com ela, mas a cada grito do homem a garotinha se calava mais. O Capitão desistiu, e depois do enterro da mãe, avisou para a menina que ela iria com ele e que moraria no seu barco. Não importava que Francis fosse uma garotinha loirinha e frágil, nem que tivesse que estudar, nem que ambiente de um barco cheio de marinheiros e piratas não fosse apropriado para ela. Ela iria com ele porque ela tinha o segredo, e ele queria esse segredo.
O Capitão detestava crianças, e ainda mais meninas. Tratava a garotinha com desprezo e requintes de crueldade. Francis trancava-se cada vez mais no seu silêncio e não dizia uma única palavra. Sabia que, depois que contasse o segredo, o pai a descartaria como um caroço de fruta, e resolveu que não falaria nada.
O pai desesperava-se. O que tinha aquela menina? Será que era normal? Tentara de tudo: bater, berrar, insistir, embebedar, sacudir, implorar, assustar, e nada. Francis simplesmente o olhava com um olhar de desprezo. A menina jurou que nunca ia falar ao pai o que sabia e assim o fez. Capitão Claudio desistiu, achando que ela tivera amnésia.
Depois de vinte anos, o Capitão foi aprisionado por um outro pirata, pertencente a um outro partido político marítimo, o Capitão Castelinho. Foi torturado e cruelmente assassinado pelos capangas do homem, que o jogaram vivo aos tubarões.
Francis já tinha vinte e oito anos quando o pai morreu. Resolveu largar o barco e estudar. Tentou vários cursos e faculdades, sem sucesso. Não gostava daquilo, e depois de cinco anos desistiu da terra firme e voltou para seus mares. Mas resolveu usar outro nome: Francis Drake. O seu lugar era ali, no meio dos homens e dos peixes, enfrentando tempestades, puxando velas, no meio da maresia; mas preferiu não usar o nome da família por questão de segurança. Tinha medo dos inimigos de seu pai.
Colocou na cabeça que teria que achar o tesouro para poder comprar sua própria embarcação. Depois de mais vinte anos, Francis já tinha pensado, estudado e remoído as palavras da avó e sabia muito bem onde estava a tal arca.
Foi muito fácil achar a ilha, o três coqueiros e o tal do mar “Cáspio” (que de mar não tinha nada). Era apenas era uma bangalô que vendia coco gelado e milho verde na beira da praia, na ilha de Florianópolis. Quando chegou ao local, ao lado dos três coqueiros, Francis teve vontade de rir: enfim entendeu o que significava a palavra “Varsóvia” que fora dita na charada da avó. Walson, ou “Varso”, era o nome do dono da barraca de coco, que passava os dias assoviando. Walson assoviando! Ora, ora, pensou a moça, olhando o rapaz, sorrindo e planejando voltar a noite para desenterrar a sua arca.
Ficou um tanto decepcionada com o que encontrou lá dentro. Esperava encontrar muito mais ouro e jóias. Porém não havia do que reclamar. Com o dinheiro, a moça pode comprar um belíssimo barco e montou uma pequena tripulação. Fazia trabalhos esporádicos, ora levando turistas para passeios, ora participando de regatas, ora pescando. Tudo correu muito bem até o dia que todo seu dinheiro acabou e Francis viu que teria que tomar uma atitude quanto a isso: o barco precisava de uma revisão, ela tinha contas e impostos a pagar e o preço do combustível estava lá nas alturas.
A moça entrou no seu quarto e abriu a arca novamente. Nada. Só sobrara uma estranha garrafa de ouro, sem nenhum tipo de ornamento e bem antiga. Que seria aquilo? Francis pensou em vender a peça, mas teve pena de se desfazer da última lembrança da família. Segurou a garrafa na mão e suspirou. Como ia fazer para sobreviver?
Arrasada, a moça colocou o barco a venda para saldar as dívidas. Foi quando apareceu Gemada, seu colega de faculdade, que Francis tinha reencontrado no ano anterior numa festa de alguns colegas na Itália.
Gemada, ou Marcel, como ele se apresentou na ocasião, era um homem de muitos negócios escusos. Embora estivesse solto e circulando livremente, o homem era um ex-criminoso, ex-traficante e ex-bandido, provavelmente em liberdade condicional. O que ele queria com ela? Marcel foi muito claro e objetivo.
- Preciso de um bom barco, Francis. E de alguém que saiba dirigi-lo. Conhece alguém?
- Quer que eu faça isso? – Francis animou-se – O meu barco está a venda.
Marcel sorriu. Comprar o barco de Francis? Mas aquilo era perfeito! E tê-la ao lado seria excelente. Era exatamente o que precisava!
- Francis, vamos fazer uma parceria. Você será minha assistente-marinheira- capitã. Topa?
- Eu? Como assim? – espantou-se a moça, que não estava entendendo nada.
Marcel explicou. Há um ano iniciara um novo negócio que estava indo maravilhosamente bem. Estava montando uma equipe para trabalhar, e precisaria de um bom barco para transportes confidenciais. Francis topou na hora. Seria excelente continuar trabalhando no seu barco e além de tudo ainda ganhar um salário. Nem pensou duas vezes para dizer ao colega Marcel - Gemada que topava.
Ele chamou Francis ao seu escritório no Rio de Janeiro para conversarem a respeito do trabalho. A moça assustou-se com o tamanho do local, no último andar de um modernérrimo edifício neoclássico no centro de Rio. “Stalk Participações Ltda”, era o nome gravado em dourado na porta de vidro na entrada do hall de elevadores. Era um escritório imenso, austero e imponente. Mas... que tipo de “negócios” que o perigoso Gemada fazia ali? Foi atendida por uma senhora estranha, já idosa, que se identificou como Hannah, secretária de Marcel. A mulher, carrancuda, pouco falou, encaminhando Francis até uma sala no final do corredor. Na porta, os dizeres “Sir Yorkman Cock, president”.
“Sir... o quê? Presidente?”, espantou-se Francis, “... onde Gemada arrumou tanto dinheiro?”, pensou a moça.
Gemada, ou Marcel, entrou em seguida na sala, seguido por Montagna, que foi apresentado como “August” e Ovomalta, que tinha o nome de “Tony”. Os dois homens estavam elegantes, barbeados e incrivelmente bem vestidos. Era possível sentir o cheiro das colônias pós-barba que usavam. Mas o que era aquilo?
Depois das apresentações, August pigarreou, acendeu um charuto e explicou. Ele e Marcel Yorkman Cock montaram uma empresa de importação e exportação que ia de vento em popa. Pretendiam esquecer o passado, trabalhar honestamente e estavam montando uma equipe de confiança. Não podiam chamar qualquer pessoa, pois como Francis sabia, os dois infelizmente tinham um passado bastante desafortunado. Por isso trocaram de identidade: agora eram executivos vindos da Inglaterra. Ela, caso topasse trabalhar com eles, teria que fazer o mesmo.
Francis teve vontade de rir. Trocar de identidade? Que coisa mais ridícula, pensou, rindo.
Mas Marcel e August falavam sério, e Francis percebeu que estava numa enrascada. Ela já sabia do segredo deles, e sendo assim, ou topava entrar ou... Francis concordou, afinal, vivera a vida toda no meio de homens perigosos. Deu de ombros e concordou, mas insistiu que teria antes que falar com seu advogado, Beto Azeitona.
- Beto Azeitona? – perguntou Marcel – Você conhece o Betão Azeitona?
- Sim – falou Francis – você também?
- Sim, claro – disse Marcel, sorrindo – Ele que nos assessora aqui na empresa! Vê, Francis? Estamos todos em casa!
O trabalho era fácil. Francis, o Kika Cheveteer (como Marcel insistia em chamá-la), quando estava no Rio, passava metade do tempo no porto, cuidando do barco, chamado “Rainha do Cáspio”, e a outra metade no escritório, pegando os documentos e encomendas que deveriam ser despachados. Nunca quis saber o que havia naqueles envelopes e o que acontecia atrás das paredes de vidro da sala de reunião. Estava satisfeita com a vida que levava.
Embora Marcel tivesse insistido para que ela morasse com ele na sua cobertura em São Conrado, Kika não aceitou. Moraria no "Rainha". Preferia que seu relacionamento com seu amigo e patrão fosse somente profissional. Aliás, Francis não gostava da idéia de ter uma vida amorosa com ninguém. Como tivera uma vida muito complicada e tivera que batalhar muito para viver sozinha, acostumara-se assim. Sentia falta de ter um amor na sua vida, mas sempre que se apaixonava por algum homem Francis fugia. Não podia perder o controle de sua vida.
Naquele, um domingo, Kika estava no apartamento de Marcel para entregar uns documentos. Estava na sala de almoço, comendo um lanche rápido quando ele a chamou. A moça respirou fundo, levantou-se e foi ate a biblioteca, no primeiro andar do apartamento, para chamar August.

[ repost de email recebido do delegado, em ilhabela ]
[ aproveito para deixar meus parabéns a Kika, Francis Drake e Fran ]




Nenhum comentário: