terça-feira, dezembro 07, 2004

Rajada [ Parte VIII ] :: O instrumento

O velho marinheiro corso ajeitou seu saco ao pé da porta do La Bela Mare.
Dok demorou a reconhecê-lo. A nuvem de fumaça tomava a varanda, pois não havia vento naquela noite abafada.
Sargaços. Como esquecer os dias e noites à deriva, o horizonte plano, levemente enevoado, o mar completamente parado. Algas. Apenas algas. As provisões se acabando. As refeições de pão sueco e ovos cozidos, levemente embolorados. As rações diárias de água e rum.
Mas, sim, o velho marinheiro e seu malfadado cavanhaque, um sorriso irônico no canto da boca, parado ali junto à porta, era.. Gillespie!
Em alguns instantes o ambiente parado contagiou-se duma alegria esfusiante. Os atropelos da confraria Ribolla, esquecidos. As meninas da penumbra sorridentes novamente.

La Be produziu rapidamente algumas garrafas de Proseco e frutos do mar.
::
Depois de alguns momentos de euforia, um ar de mistério envolveu Gillespie.
Retirando seu sax alto do saco, passou-o às mãos de Mona.
- Você, só você pode desvendar essa charada. Desde a passagem de Calais ouço falar que me querem e ao meu instrumento. Guarde-o cuidadosamente. Sei que estarei seguro enquanto o instrumento estiver a salvo, em mãos de uma pessoa de inteira confiança.

Mona enrubeceu ao receber o que Gillespie lhe confiava. Todos os olhos voltavam-se para Mona que, silenciosamente, embrulhou o sax.

- Devo sair, agora. Em breve poderão me reencontrar, em um local público onde a multidão nos acobertará.

E voltando-se para Setnof: - Faremos contato.

Nesse momento, tropeçando com grande estardalhaço, entrou Jr. Mona rapidamente escondeu o embrulho, Franka socorreu Jr e, ao voltarem-se para Gillespie.. onde estava?

Jr ofegava, ainda, como se terminasse uma grande e desabalada corrida. Seu aspecto era mórbido, olhos injetados, imensas olheiras e lábios ressecados.
- Desde que Katza me achou na ilha.. desde então.. não tenho tido uma noite de paz. Tudo pareceu um sonho, um pesadelo. As lembranças me voltam enevoadas.. Penso em touros, touros esgotados. Semem. O terrível aroma de cândida..

Franka afagava suavemente os cabelos emaranhados de Jr. Mesmo Dok, avesso a manifestações de carinho, sorriu discretamente para Jr. Katza, afinal, era conhecida pela ganância e despudor.

:.:
Os inúmeros assuntos pendentes, o desembarque dos toneis de 6996, o sumiço de Kivas Regal, o paradeiro de Kika Drake, deveriam ser agora postos à mesa. Para Franka e La Bela, encontrar P. Etthê tornara-se crucial. Mas onde ? Como ? Deveria Franka retomar seu posto na organização ? Ou seria mesmo La Be capaz de assumir as missões a ela designadas ? Yolkman e Mntgn, onde estariam após a confusão na noite da explosão do navio?
.:
Carmen Rubia surgiu silenciosamente e juntou-se ao grupo. Parecia querer dizer algo, mas temia expor-se.
Finalmente, atreveu-se, olhando para Mona: - Devemos voltar para junto de Katza. A resposta que procuramos está na biboca.
- É muito arriscado - sugeriu Franka - A cada momento vocês estão mais expostas..
- Não. - Disse Carmen Rubia, quase ríspida. - A biboca é o ponto central no porto. Por ali passam os marinheiros, os estivadores, os mercadores e os proxenetas. Eles bebem, relaxam, contam histórias.

Todos ouviam em silêncio desconfortável. Compreendiam que para Carmen Rubia, Ucha, a antiga secretária do Conde, era fundamental a missão. Mesmo que este houvesse se recolhido a um quase anonimato, servindo discretamente as mesas do La Bela Mare.

- É preciso ajudá-lo a recuperar a auto-estima - sugeriu La Be.

Todos concordavam ao menos num ponto, então.
Desde que foi acolhido por Be, o conde viu seu cabelo ralear, tomado de fios grisalhos.
A falta de suas doses diárias de 6996 só fez piorar sua condição. Raramente se manifestava, preferindo recolher-se logo que os últimos clientes saiam. Nunca sentou-se à varanda com Dok, dirigia-se encabulado a La Be, mal disfarçando seu constrangimento em, de rico produtor do famoso Ribolla, servir taças de vinho.. chileno!


As tensões acumuladas entre aqueles que outrora partilhavam da amizade e confiança do Conde dificultavam o entendimento, ainda se considerando a sucessão de eventos dramáticos que se desenrolaram desde a chegada do Rajada ao porto. Os últimos comentários atribuidos a Kivas Regal, diz-se que ouvidos na biboca de Mme Katza, traiam uma profunda angústia e decepção, mas não se sabe a respeito de que.

::
Ao amanhecer, Dok ainda estava acordado. Dok ainda se incomodava com o entra e sai no restaurante, apesar da mesa cativa e do farto suprimento de álcool e tabaco. Algo lhe faltava.

O mensageiro entrou discretamente e fez soar a sineta junto ao balcão na recepção do restaurante.
Dok levantou-se com um muxoxo, mal humorado, e recebeu o bilhete verde que o mensageiro lhe entregava.
Leu displicentemente, mas logo acendeu-se um brilho em seu olhar.
repetiu em voz alta:

- Gillespie no sábado. Villa. Editore.

Então conseguiram chegar a um acordo! Ora, para Dok, os encontros etílicos tornaram-se já há muito uma das razões de sua longa existência. Claro que freqüentemente perdia o controle, já escasso, e punha-se a falar barbaridades mas, contados os prós e contras, ainda valiam a pena.

De volta à varanda, fitou demoradamente o mar. Nenhuma brisa, ainda. Mas no horizonte, um farto ascendente causava a aglomeração de gaivotas. Quem sabe mais tarde ? Pensou no Rajada, seus estais desfiando, sua genoa envelhecida, o rádio recalcitante e ruidoso...
Quando voltaria ao mar ?
Que gosto estranho sentia, depois de tantos e tantos anos, por uma passagem mais longa, ou uma perna em mar grosso!

Repetiu consigo mesmo: - Gillespie no sábado. Villa...


Nenhum comentário: